O contrato de
transporte internacional de mercadorias
1 Dos contratos no direito interno
De acordo com o Código Civil
Brasileiro o contrato, juntamente com as declarações de vontade e
os atos ilícitos, é fonte de obrigações, cuja eficácia é
conferida pela lei (revestindo-o de caráter de fonte legal imediata
ou direta) (GONÇALVES, 2010).
O contrato, segundo Beviláqua em
Carlos Roberto Gonçalves (2010, p.14), pode ser definido em poucas
linhas como um acordo de vontades cujo fim é modificar ou extinguir
direitos; é a fonte mais comum da expressão do negócio jurídico.
São necessários, para reputar-se tal negócio jurídico perfeito, a
existência de determinados requisito e elementos.
Os primeiros (requisitos) são as
condições de validade, que podem ser de ordem geral, comum a todos
os atos e negócios jurídicos, que são a capacidade do agente,
objeto lícito, possível, determinado (ou determinável), e a forma
prescrita ou não defesa em lei ( CC, artigo 104,incisos, I, II e
III, respectivamente), e de ordem especial, o acordo de vontades. A
manifestação da vontade pode se dar por escrito ou de forma tácita
(quando a lei não condicionar a validade do contrato à declaração
expressa da vontade) (GONÇALVES, 2010).
Os segundos (elementos) são a
proposta e a aceitação, a expressão da vontade de ofertar e
servir-se da oferta. A proposta vincula o proponente, exceto nos
casos mencionados no artigo 427 do Código Civil, devendo o
proponente indenizar em perdas e danos a outra parte. O código do
consumidor também regula o tema, e de forma mais minuciosa, quando
da recusa indevida de dar cabo da oferta, o consumidor poderá optar
pela resolução em perdas e danos ou executar a proposta, exigir
permuta ou simplesmente rescindir o contrato, com restituição do
valor integral pago mais perdas e danos.1
O aceite é a expressão da vontade do contratante e pode ser
expressa ou tácita (esta última quando a lei não exigir que seja
expressa). É através dele que o contratante vincula sua vontade ao
contrato, gerando para si responsabilidade idêntica à do
contratado, exceto no casos dos artigos 430 e 433 do Código Civil (
resposta de aceite chega tardiamente ao contratado, que deve informar
imediatamente o atraso ao contratante e no caso da retratação do
aceite que chega concomitantemente com o aceite ao conhecimento do
contratado) (GONÇALVES, 2010; MONTEIRO, 1989).
Como fundamentos imprescindíveis à
regência e existência dos contratos existem uma série de
princípios que encontram-se expressos em lei ou que dela podem ser
deduzidos.
1 2Princípios do contratos
Os princípios mais importantes são
a autonomia da vontade, supremacia da ordem pública, consensualismo,
relatividade, obrigatoriedade, onerosidade excessiva e boa-fé.
A autonomia da vontade encontra seu
significado na ampla liberdade de contratar, fazendo com que a
anuência dos termos entre as partes faça lei entre elas. Podendo
tai obrigações serem exigidas em juízo (MONTEIRO, 1989).
O princípio do consensualismo nos
ensina que o contrato reputa-se perfeito quando da oferta e aceite,
sem levar em conta a tradição. O consenso nada mais é senão a
manifestação de vontades que se encontram, declarações
convergentes. No entanto o doutrinador, Silvio de Salvo Venosa,
afirma que o silêncio não pode ser interpretado como um aceite
daquilo que poderia ter sido refutado e não foi. Tampouco poderia
ser interpretado o artigo 111 do Código Civil, segundo o autor, no
sentido de que o silêncio a que se refere o dispositivo não seja
outra senão a forma tácita de aceitação do contrato. Um equivoco
de expressão contido no dileto texto civil. Expõe em sua obra que
existe diferença entre a aceitação tácita e o silêncio. Para
este trabalho tal diferença consiste basicamente no fato de que a
aceitação tácita se depreende do indivíduo no momento que pratica
atos condizentes com o aceite. O silêncio é um nada, nem um sim,
nem um não, neste ponto convergindo com a ideia do doutrinador
citado (VENOSA, 2005.p.400-401). São exceções a este princípio os
contratos reais, que só se aperfeiçoam com a entrega do objeto
(exemplos destes contratos são os de comodato, mútuo e depósito).
O princípio da relatividade diz que
o contrato faz lei entre as partes, não se estendendo a terceiros.
No entanto o princípio possui algumas exceções que são expressas
no artigos 436 e 438 do Código Civil, que são as estipulações em
favor de terceiros (GONÇALVEZ, 2010).
A onerosidade excessiva2
opõe-se à
obrigatoriedade uma vez que que as partes poderão recorrer ao
judiciário para modificarem as leis contratuais a que se encontram
sujeitas. Tais modificações podem ser pleiteadas uma vez que
acontecimentos externos modificam a situação dos contratantes e
oneram excessivamente uma das partes. Tais condições estão
associadas à vigência de um contrato comutativo de execução
diferida ou trato sucessivo, à ocorrência de fato extraordinário e
imprevisível, à alteração da situação de fato na hora da
contratação diante a situação da execução e à vantagem
exagerada de um, em face da onerosidade descomunal de outro
(MONTEIRO, 1989; GONÇALVES, 2010).
O princípio da boa-fé resume-se
naquilo que não se pode obter como vantagem utilizando-se da própria
torpeza como meio. Tal fundamento reza que as partes devem
comportar-se de forma íntegra, colaborando para o cumprimento das
obrigações contratadas, agindo com probidade e boa-fé (artigo 422,
CC). A boa-fé é comumente dividida em boa fé objetiva e subjetiva.
A subjetiva é aquela em que o agente acredita estar agindo de acordo
com as regras de direito, ignorando o fato da realidade ser diversa.
A objetiva esta expressa no artigos 422, 113 e 187 do Código Civil e
diz repeito àquele que deve ser o comportamento de acordo com a
probidade, moralidade e respeito ao objeto e conteúdo do contrato
(GONÇALVES, 2010; VENOSA, 2005).
1.2.1 Obrigatoriedade, função social do contrato e ordem pública.
Outro princípio contratual, cuja
compreensão é fundamental para este trabalho é o da
obrigatoriedade, e também sua mitigação em razão dos princípios
da ordem pública e função social do contrato. Para entender como
se dá tal mitigação é preciso ter em mente as definições de
cada um destes três princípios.
A obrigatoriedade é a força que
vincula as partes aos termos do contrato, que só produzem efeitos
entre elas3.
Este princípio se fundamenta na necessidade de haver segurança no
negócio, garantindo seu cumprimento ou exigibilidade, a
imutabilidade ou intangibilidade do contrato, alcançada somente pelo
princípio da onerosidade excessiva. Tal característica contratual é
conhecida também pela expressão latina “pacta
sunt servanda”.
O
princípio da ordem pública representa a interferência do direito
público na esfera privada, lapidando a autonomia da vontade, a
liberdade de contratar. Tal princípio teve sua origem na necessidade
de proteger o interesse daquela parte que era muito mais fraca dentro
da relação contratual (GONÇALVES, 2010). O estado interfere, neste
momento, restabelecendo o equilíbrio entre as partes. Diversas leis
foram editadas com a finalidade de proteger os hipossuficientes
dentro do contrato, de acordo com a natureza do negócio jurídico,
por exemplo, a Lei de Usura, que visa proteger o tomador de
empréstimo, e a mais importante para o objeto deste trabalho, o
Código de Defesa do Consumidor, que visa proteger o consumidor de
produto e serviços (GONÇALVES, 2010).
A função social do contrato é uma
limitação expressa no Código Civil, artigo 421, ao princípio da
autonomia da vontade, a liberdade de contratar. Nesta liberdade de
contratar subtende-se estar contida qualquer expressão da vontade
dos contraentes (GONÇALVES, 2010). No entanto a lei desce sobre o
contrato limitando seu objeto, a validade da declaração da vontade
e a função social do contrato. O objeto não pode ser ilegal e deve
ser determinado ou determinável, a validade da declaração da
vontade está atrelada à capacidade das partes, à inexistência de
vício no consentimento, dolo ou erro e a função social do contrato
deve levar à plenitude da vontade dos contratantes, desde que estas
não colidam com o interesse público. Um dispositivo que preenche a
proteção ao princípio da função social do contrato é o § 4º
do Art. 173 da Constituição, que não admite negócio jurídico que
implique abuso do poder econômico que vise à dominação dos
mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário
dos lucros. O contrato de consumo, por exemplo, está adstrito à
função social do contrato no momento em torna sem efeitos, na
relação de consumo, qualquer cláusula contratual que ofenda os
direitos do consumidor expressos em lei. É o caso das cláusulas
abusivas contidas em inúmeros contrato de adesão (GONÇALVES,
2010).
Assim se torna clara a mitigação do
princípio da obrigatoriedade em razão da função social do
contrato e da ordem pública, estes, que carregam a tarefa de
proteger o interesse público e social em detrimento do interesse
privado, fazem com que não assumam caráter de lei entre as partes
os termos do contrato que contra eles colidir.
O contrato de transporte é aquele em
que alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um
lugar para outro, pessoas ou coisas (Código Civil, artigo 730). O
transporte da mercadoria pode ser acessório ou principal. Acessório
quando faz parte da tradição a entrega do bem pelo vendedor. Neste
caso o objeto do contrato não é o transporte e o contratado não
assume a figura de transportador. Quando o transporte da mercadoria é
o objeto principal do contrato o contratado se denomina transportador
e possui a obrigação exclusiva de trasladar a coisa, submetendo-se
às regras de compra e venda (GONÇALVES, 2010 .p.165).
O objeto do contrato de transporte
poderá ser coisa ou pessoa (artigo 730 a 756 do Código Civil) e
pode ser de modalidade rodoviária, ferroviária, aérea, terrestre e
marítima. Os contratos que interessam ao tema deste trabalho são os
de transporte de coisas por via marítima.
Os contratos de transporte são
onerosos, consensuais, comutativos, não solenes e comumente de
adesão. Onerosos porque para realizar a atividade a parte contratada
exige uma prestação pecuniária. Consensuais porque se aperfeiçoam
com o acordo de vontades, muitas vezes tácito. Comutativos pois as
prestações são determinadas. Não solenes por não terem forma pré
estabelecida. E de adesão pois o contrato já está pronto e aquele
que deseja transportar bens deve anuir para com as cláusulas
previamente estabelecidas pela transportadora (GONÇALVES, 2010).
O transportador poderá recusar-se
transportar mercadoria mal acondicionada, que possa danificar o
veículo, outros bens ou pessoas (artigo 746 Código Civil), bem como
deverá recusar mercadoria ilegal ou aquela que não apresenta a
documentação exigida pela lei ou outras regulamentações (artigo
747 Código Civil).
São deveres do transportador
conduzir a coisa com zelo pela sua integridade e entregá-la no prazo
, da mesma forma que é responsável pelos danos causado a coisa,
limitado pelo valor constante do conhecimento (que deve ser emitido
quando da entrega da coisa para que seja transportada). Sua
responsabilidade se encerra com a entrega da coisa ao destinatário
ou a terceiros nos termos do contrato ou em juízo, se não for
encontrado aquele que a deva receber, ou ainda no caso de dúvida a
quem se deva entregar.
Se a avaria não for perceptível de
início o destinatário possui 10 dias para denunciar o dano, a
contar da data da entrega da coisa. Quando o transporte for
multimodal os transportadores respondem solidariamente pelo dano
causado, podendo, na comprovação daquele que lhe deu causa, os
demais moverem ação regressiva.
1.3.1 O contrato internacional de transporte marítimo
O contrato internacional de
transporte tem o mesmo objeto do contrato de transporte anteriormente
destacado, o que difere ambos é que o destino da mercadoria não é
no país de origem e a modalidade é parcialmente ou exclusivamente
marítima. Os contratos marítimos são classificados em hipoteca
naval, contrato de praticagem, contrato de trabalho da tripulação e
capitão, fretamento4,
contrato de transporte de pessoas e bagagens, contrato de seguro,
contrato de reboque (LACERDA, 1984).
Aqueles cujo estudo são de maior
relevância para este trabalho são o contratos de fretamento,
praticagem e reboque.
O contrato de reboque é aquele que
tem como objeto a garantia da retirada da embarcação que se
encontra impossibilitada de mover-se sozinha, tal manobra é
realizada por um navio rebocador (LACERDA, 1984).
O contrato de praticagem tem como
objetivo a garantia da segurança da navegação em trechos perigosos
ou de difícil acesso, visto que estes profissionais são
especializados na realização de manobras em tais áreas (LACERDA,
1984). A praticagem é um dos serviços auxiliares da navegação,
sendo regulamentada pelo Decreto 2.596/98.
O fretamento é uma modalidade de
serviço de transporte, talvez a mais numerosa, cujo contrato é
chamado de carta de fretamento ou carta-partida5.
Tal modalidade contratual ocorre quando a transportadora (afretador)
contrata um um navio para realizar o frete (fretador), procedimento
conhecido como fretamento. O fretamento pode ser total ou parcial.
Total quando o navio é alugado por inteiro para uma carga. Parcial
quando uma parte do navio é alugada. Quando o fretamento é total
basta apenas a elaboração da carta-partida, se for parcial é
necessário que se faça o conhecimento de embarque. O fretamento
pode ainda ser à casco nu, por tempo, por viajem ou bareboat
charter party. No entanto
tal contrato (de fretamento) só é relevante para o estudo deste
trabalho se a parte a contratar o serviço for hipossuficiente. A
responsabilidade do transportador não é derrogada em função do
fretamento, mas se estabelece pela relação ente o contratante do
transporte marítimo internacional e a transportadora, portanto está
adstrito ao termos deste contrato, conforme a legislação a ser
aplicada sobre ele6.
Se afretador e fretador são pares na relação contratual então não
há que se falar em aplicar as leis consumeristas entre eles. No
entanto subsistirá a necessidade de aplicá-la, no caso da parte que
contrata a transportadora ser consumidora, independentemente da
transportadora fazer por si a tarefa ou contratar serviço por
fretamento (LACERDA, 1984).
Fretamento a casco nu é contrato em
virtude do qual “o
afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo
determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a
tripulação” (lei
9432/97, artigo 2º, inciso I) .
Fretamento bareboat
charter party é idêntico
ao fretamento a casco nú, porém o afretador fica com a posse e a
administração do navio .Neste caso o afretador fica responsável
por armar e provisionar o navio e assume os compromissos contratuais
a que se submeteu realizar (LACERDA, 1984).
Fretamento por viajem resume-se no
contrato “em virtude do
qual o fretador se obriga a colocar o todo ou parte de uma
embarcação, com tripulação, à disposição do afretador para
efetuar transporte em uma ou mais viagens” (lei
9432/97, artigo 2º, inciso III)
.
Fretamento por tempo se constitui
pelo contrato em virtude do qual o “afretador
recebe a embarcação armada e tripulada, ou parte dela, para
operá-la por tempo determinado”
(lei 9432/97, artigo 2º, inciso II).
O fretamento parcial ou total é
constituído por um documento que serve como recibo de entrega da
carga que será embarcada e é também um título de propriedade da
mercadoria que pode ser negociado e transferido. Este documento é
chamado também de conhecimento de embarque (Bill of Lading ou BL). O
conhecimento de embarque, ainda que não possua forma definida, se
apresentar as informações do artigo 585 do Código Comercial tem
força e vale como escritura pública7.
As partes do contrato internacional
de transporte marítimo podem estar em par de igualdade ou de
hipossuficiência. Identificar esta diferença dos atores
contratantes é de extrema relevância para que se possa determinar
o pavilhão das regras a serem aplicadas sobre o contrato. Fato este
ignorado pelos contratos de transporte marítimo e muitas vezes pelos
próprios usuários do serviço.
1Código
de defesa do consumidor, artigos 35, inciso I,II e III e artigo 84,
parágrafo 1º.
2No
contratos internacionais esta cláusula é chamada de hardship.
3
vide exceções
anteriormente citadas ao princípio da relatividade
4O
fretamento se divide em parcial ou por espaço, a casco nú, por
tempo ou prazo, por viajem ou bareboat
charter party.
5
Art. 567 - A carta-partida deve
enunciar: 1 - o nome do capitão e o do navio, o porte deste, a
nação a que pertence, e o porto do seu registro (artigo nº. 460);
2 - o nome do fretador e o do afretador, e seus respectivos
domicílios; se o fretamento for por conta de terceiro deverá
também declarar-se o seu nome e domicílio; 3 - a designação da
viagem, se é redonda ou ao mês, para uma ou mais viagens, e se
estas são de ida e volta ou somente para ida ou volta, e finalmente
se a embarcação se freta no todo ou em parte; 4 - o gênero e
quantidade da carga que o navio deve receber, designada por
toneladas, nºs, peso ou volume, e por conta de quem a mesma será
conduzida para bordo, e deste para terra; 5 - o tempo da carga e
descarga, portos de escala quando a haja, as estadias e sobre
estadias ou demoras, e a forma por que estas se hão de vencer e
contar; 6 - o preço do frete, quanto há de pagar-se de primagem ou
gratificação, e de estadias e sobre estadias, e a forma, tempo e
lugar do pagamento; 7 - se há lugares reservados no navio, além
dos necessários para uso e acomodação do pessoal e material do
serviço da embarcação; 8 - todas as mais estipulações em que as
partes se acordarem.
6
Que por sua vez depende da relação
de igualdade ou hipossuficiência das partes contratadas.
7
O
conhecimento, para tanto, deverá conter (artigo 575 e incisos, do
Código Comercial): “Art.
575 - O
conhecimento deve ser datado, e declarar: 1 - o nome do capitão, e
o do carregador e consignatário (podendo omitir-se o nome deste se
for à ordem), e o nome e porte do navio; 2 - a qualidade e a
quantidade dos objetos da carga, suas marcas e números, anotados à
margem; 3 - o lugar da partida e o do destino, com declaração das
escalas, havendo-as; 4 - o preço do frete e primagem, se esta for
estipulada, e o lugar e forma do pagamento; 5 - a assinatura do
capitão (artigo nº. 577), e a do carregador.”
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