segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Direito Civil e Marítimo, Parte I

O Contrato de Transporte de Mercadorias por Via Marítimia




O contrato de transporte internacional de mercadorias

1 Dos contratos no direito interno


De acordo com o Código Civil Brasileiro o contrato, juntamente com as declarações de vontade e os atos ilícitos, é fonte de obrigações, cuja eficácia é conferida pela lei (revestindo-o de caráter de fonte legal imediata ou direta) (GONÇALVES, 2010).

O contrato, segundo Beviláqua em Carlos Roberto Gonçalves (2010, p.14), pode ser definido em poucas linhas como um acordo de vontades cujo fim é modificar ou extinguir direitos; é a fonte mais comum da expressão do negócio jurídico. São necessários, para reputar-se tal negócio jurídico perfeito, a existência de determinados requisito e elementos.
Os primeiros (requisitos) são as condições de validade, que podem ser de ordem geral, comum a todos os atos e negócios jurídicos, que são a capacidade do agente, objeto lícito, possível, determinado (ou determinável), e a forma prescrita ou não defesa em lei ( CC, artigo 104,incisos, I, II e III, respectivamente), e de ordem especial, o acordo de vontades. A manifestação da vontade pode se dar por escrito ou de forma tácita (quando a lei não condicionar a validade do contrato à declaração expressa da vontade) (GONÇALVES, 2010).

Os segundos (elementos) são a proposta e a aceitação, a expressão da vontade de ofertar e servir-se da oferta. A proposta vincula o proponente, exceto nos casos mencionados no artigo 427 do Código Civil, devendo o proponente indenizar em perdas e danos a outra parte. O código do consumidor também regula o tema, e de forma mais minuciosa, quando da recusa indevida de dar cabo da oferta, o consumidor poderá optar pela resolução em perdas e danos ou executar a proposta, exigir permuta ou simplesmente rescindir o contrato, com restituição do valor integral pago mais perdas e danos.1 O aceite é a expressão da vontade do contratante e pode ser expressa ou tácita (esta última quando a lei não exigir que seja expressa). É através dele que o contratante vincula sua vontade ao contrato, gerando para si responsabilidade idêntica à do contratado, exceto no casos dos artigos 430 e 433 do Código Civil ( resposta de aceite chega tardiamente ao contratado, que deve informar imediatamente o atraso ao contratante e no caso da retratação do aceite que chega concomitantemente com o aceite ao conhecimento do contratado) (GONÇALVES, 2010; MONTEIRO, 1989).

Como fundamentos imprescindíveis à regência e existência dos contratos existem uma série de princípios que encontram-se expressos em lei ou que dela podem ser deduzidos.


1 2Princípios do contratos


Os princípios mais importantes são a autonomia da vontade, supremacia da ordem pública, consensualismo, relatividade, obrigatoriedade, onerosidade excessiva e boa-fé.
A autonomia da vontade encontra seu significado na ampla liberdade de contratar, fazendo com que a anuência dos termos entre as partes faça lei entre elas. Podendo tai obrigações serem exigidas em juízo (MONTEIRO, 1989).

O princípio do consensualismo nos ensina que o contrato reputa-se perfeito quando da oferta e aceite, sem levar em conta a tradição. O consenso nada mais é senão a manifestação de vontades que se encontram, declarações convergentes. No entanto o doutrinador, Silvio de Salvo Venosa, afirma que o silêncio não pode ser interpretado como um aceite daquilo que poderia ter sido refutado e não foi. Tampouco poderia ser interpretado o artigo 111 do Código Civil, segundo o autor, no sentido de que o silêncio a que se refere o dispositivo não seja outra senão a forma tácita de aceitação do contrato. Um equivoco de expressão contido no dileto texto civil. Expõe em sua obra que existe diferença entre a aceitação tácita e o silêncio. Para este trabalho tal diferença consiste basicamente no fato de que a aceitação tácita se depreende do indivíduo no momento que pratica atos condizentes com o aceite. O silêncio é um nada, nem um sim, nem um não, neste ponto convergindo com a ideia do doutrinador citado (VENOSA, 2005.p.400-401). São exceções a este princípio os contratos reais, que só se aperfeiçoam com a entrega do objeto (exemplos destes contratos são os de comodato, mútuo e depósito).

O princípio da relatividade diz que o contrato faz lei entre as partes, não se estendendo a terceiros. No entanto o princípio possui algumas exceções que são expressas no artigos 436 e 438 do Código Civil, que são as estipulações em favor de terceiros (GONÇALVEZ, 2010).

A onerosidade excessiva2 opõe-se à obrigatoriedade uma vez que que as partes poderão recorrer ao judiciário para modificarem as leis contratuais a que se encontram sujeitas. Tais modificações podem ser pleiteadas uma vez que acontecimentos externos modificam a situação dos contratantes e oneram excessivamente uma das partes. Tais condições estão associadas à vigência de um contrato comutativo de execução diferida ou trato sucessivo, à ocorrência de fato extraordinário e imprevisível, à alteração da situação de fato na hora da contratação diante a situação da execução e à vantagem exagerada de um, em face da onerosidade descomunal de outro (MONTEIRO, 1989; GONÇALVES, 2010).

O princípio da boa-fé resume-se naquilo que não se pode obter como vantagem utilizando-se da própria torpeza como meio. Tal fundamento reza que as partes devem comportar-se de forma íntegra, colaborando para o cumprimento das obrigações contratadas, agindo com probidade e boa-fé (artigo 422, CC). A boa-fé é comumente dividida em boa fé objetiva e subjetiva. A subjetiva é aquela em que o agente acredita estar agindo de acordo com as regras de direito, ignorando o fato da realidade ser diversa. A objetiva esta expressa no artigos 422, 113 e 187 do Código Civil e diz repeito àquele que deve ser o comportamento de acordo com a probidade, moralidade e respeito ao objeto e conteúdo do contrato (GONÇALVES, 2010; VENOSA, 2005).


1.2.1 Obrigatoriedade, função social do contrato e ordem pública.


Outro princípio contratual, cuja compreensão é fundamental para este trabalho é o da obrigatoriedade, e também sua mitigação em razão dos princípios da ordem pública e função social do contrato. Para entender como se dá tal mitigação é preciso ter em mente as definições de cada um destes três princípios.

A obrigatoriedade é a força que vincula as partes aos termos do contrato, que só produzem efeitos entre elas3. Este princípio se fundamenta na necessidade de haver segurança no negócio, garantindo seu cumprimento ou exigibilidade, a imutabilidade ou intangibilidade do contrato, alcançada somente pelo princípio da onerosidade excessiva. Tal característica contratual é conhecida também pela expressão latina “pacta sunt servanda”.

O princípio da ordem pública representa a interferência do direito público na esfera privada, lapidando a autonomia da vontade, a liberdade de contratar. Tal princípio teve sua origem na necessidade de proteger o interesse daquela parte que era muito mais fraca dentro da relação contratual (GONÇALVES, 2010). O estado interfere, neste momento, restabelecendo o equilíbrio entre as partes. Diversas leis foram editadas com a finalidade de proteger os hipossuficientes dentro do contrato, de acordo com a natureza do negócio jurídico, por exemplo, a Lei de Usura, que visa proteger o tomador de empréstimo, e a mais importante para o objeto deste trabalho, o Código de Defesa do Consumidor, que visa proteger o consumidor de produto e serviços (GONÇALVES, 2010).

A função social do contrato é uma limitação expressa no Código Civil, artigo 421, ao princípio da autonomia da vontade, a liberdade de contratar. Nesta liberdade de contratar subtende-se estar contida qualquer expressão da vontade dos contraentes (GONÇALVES, 2010). No entanto a lei desce sobre o contrato limitando seu objeto, a validade da declaração da vontade e a função social do contrato. O objeto não pode ser ilegal e deve ser determinado ou determinável, a validade da declaração da vontade está atrelada à capacidade das partes, à inexistência de vício no consentimento, dolo ou erro e a função social do contrato deve levar à plenitude da vontade dos contratantes, desde que estas não colidam com o interesse público. Um dispositivo que preenche a proteção ao princípio da função social do contrato é o § 4º do Art. 173 da Constituição, que não admite negócio jurídico que implique abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. O contrato de consumo, por exemplo, está adstrito à função social do contrato no momento em torna sem efeitos, na relação de consumo, qualquer cláusula contratual que ofenda os direitos do consumidor expressos em lei. É o caso das cláusulas abusivas contidas em inúmeros contrato de adesão (GONÇALVES, 2010).

Assim se torna clara a mitigação do princípio da obrigatoriedade em razão da função social do contrato e da ordem pública, estes, que carregam a tarefa de proteger o interesse público e social em detrimento do interesse privado, fazem com que não assumam caráter de lei entre as partes os termos do contrato que contra eles colidir.

1.3 O contrato de transporte

O contrato de transporte é aquele em que alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas (Código Civil, artigo 730). O transporte da mercadoria pode ser acessório ou principal. Acessório quando faz parte da tradição a entrega do bem pelo vendedor. Neste caso o objeto do contrato não é o transporte e o contratado não assume a figura de transportador. Quando o transporte da mercadoria é o objeto principal do contrato o contratado se denomina transportador e possui a obrigação exclusiva de trasladar a coisa, submetendo-se às regras de compra e venda (GONÇALVES, 2010 .p.165).

O objeto do contrato de transporte poderá ser coisa ou pessoa (artigo 730 a 756 do Código Civil) e pode ser de modalidade rodoviária, ferroviária, aérea, terrestre e marítima. Os contratos que interessam ao tema deste trabalho são os de transporte de coisas por via marítima.

Os contratos de transporte são onerosos, consensuais, comutativos, não solenes e comumente de adesão. Onerosos porque para realizar a atividade a parte contratada exige uma prestação pecuniária. Consensuais porque se aperfeiçoam com o acordo de vontades, muitas vezes tácito. Comutativos pois as prestações são determinadas. Não solenes por não terem forma pré estabelecida. E de adesão pois o contrato já está pronto e aquele que deseja transportar bens deve anuir para com as cláusulas previamente estabelecidas pela transportadora (GONÇALVES, 2010).

O transportador poderá recusar-se transportar mercadoria mal acondicionada, que possa danificar o veículo, outros bens ou pessoas (artigo 746 Código Civil), bem como deverá recusar mercadoria ilegal ou aquela que não apresenta a documentação exigida pela lei ou outras regulamentações (artigo 747 Código Civil).

São deveres do transportador conduzir a coisa com zelo pela sua integridade e entregá-la no prazo , da mesma forma que é responsável pelos danos causado a coisa, limitado pelo valor constante do conhecimento (que deve ser emitido quando da entrega da coisa para que seja transportada). Sua responsabilidade se encerra com a entrega da coisa ao destinatário ou a terceiros nos termos do contrato ou em juízo, se não for encontrado aquele que a deva receber, ou ainda no caso de dúvida a quem se deva entregar.

Se a avaria não for perceptível de início o destinatário possui 10 dias para denunciar o dano, a contar da data da entrega da coisa. Quando o transporte for multimodal os transportadores respondem solidariamente pelo dano causado, podendo, na comprovação daquele que lhe deu causa, os demais moverem ação regressiva.


1.3.1 O contrato internacional de transporte marítimo


O contrato internacional de transporte tem o mesmo objeto do contrato de transporte anteriormente destacado, o que difere ambos é que o destino da mercadoria não é no país de origem e a modalidade é parcialmente ou exclusivamente marítima. Os contratos marítimos são classificados em hipoteca naval, contrato de praticagem, contrato de trabalho da tripulação e capitão, fretamento4, contrato de transporte de pessoas e bagagens, contrato de seguro, contrato de reboque (LACERDA, 1984).

Aqueles cujo estudo são de maior relevância para este trabalho são o contratos de fretamento, praticagem e reboque.

O contrato de reboque é aquele que tem como objeto a garantia da retirada da embarcação que se encontra impossibilitada de mover-se sozinha, tal manobra é realizada por um navio rebocador (LACERDA, 1984).

O contrato de praticagem tem como objetivo a garantia da segurança da navegação em trechos perigosos ou de difícil acesso, visto que estes profissionais são especializados na realização de manobras em tais áreas (LACERDA, 1984). A praticagem é um dos serviços auxiliares da navegação, sendo regulamentada pelo Decreto 2.596/98. 
 
O fretamento é uma modalidade de serviço de transporte, talvez a mais numerosa, cujo contrato é chamado de carta de fretamento ou carta-partida5. Tal modalidade contratual ocorre quando a transportadora (afretador) contrata um um navio para realizar o frete (fretador), procedimento conhecido como fretamento. O fretamento pode ser total ou parcial. Total quando o navio é alugado por inteiro para uma carga. Parcial quando uma parte do navio é alugada. Quando o fretamento é total basta apenas a elaboração da carta-partida, se for parcial é necessário que se faça o conhecimento de embarque. O fretamento pode ainda ser à casco nu, por tempo, por viajem ou bareboat charter party. No entanto tal contrato (de fretamento) só é relevante para o estudo deste trabalho se a parte a contratar o serviço for hipossuficiente. A responsabilidade do transportador não é derrogada em função do fretamento, mas se estabelece pela relação ente o contratante do transporte marítimo internacional e a transportadora, portanto está adstrito ao termos deste contrato, conforme a legislação a ser aplicada sobre ele6. Se afretador e fretador são pares na relação contratual então não há que se falar em aplicar as leis consumeristas entre eles. No entanto subsistirá a necessidade de aplicá-la, no caso da parte que contrata a transportadora ser consumidora, independentemente da transportadora fazer por si a tarefa ou contratar serviço por fretamento (LACERDA, 1984).

Fretamento a casco nu é contrato em virtude do qual “o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação, por tempo determinado, incluindo o direito de designar o comandante e a tripulação” (lei 9432/97, artigo 2º, inciso I) .

Fretamento bareboat charter party é idêntico ao fretamento a casco nú, porém o afretador fica com a posse e a administração do navio .Neste caso o afretador fica responsável por armar e provisionar o navio e assume os compromissos contratuais a que se submeteu realizar (LACERDA, 1984).

Fretamento por viajem resume-se no contrato “em virtude do qual o fretador se obriga a colocar o todo ou parte de uma embarcação, com tripulação, à disposição do afretador para efetuar transporte em uma ou mais viagens” (lei 9432/97, artigo 2º, inciso III) .

Fretamento por tempo se constitui pelo contrato em virtude do qual o “afretador recebe a embarcação armada e tripulada, ou parte dela, para operá-la por tempo determinado” (lei 9432/97, artigo 2º, inciso II).

O fretamento parcial ou total é constituído por um documento que serve como recibo de entrega da carga que será embarcada e é também um título de propriedade da mercadoria que pode ser negociado e transferido. Este documento é chamado também de conhecimento de embarque (Bill of Lading ou BL). O conhecimento de embarque, ainda que não possua forma definida, se apresentar as informações do artigo 585 do Código Comercial tem força e vale como escritura pública7
 
As partes do contrato internacional de transporte marítimo podem estar em par de igualdade ou de hipossuficiência. Identificar esta diferença dos atores contratantes é de extrema relevância para que se possa determinar o pavilhão das regras a serem aplicadas sobre o contrato. Fato este ignorado pelos contratos de transporte marítimo e muitas vezes pelos próprios usuários do serviço.


1Código de defesa do consumidor, artigos 35, inciso I,II e III e artigo 84, parágrafo 1º.
2No contratos internacionais esta cláusula é chamada de hardship.
3 vide exceções anteriormente citadas ao princípio da relatividade
4O fretamento se divide em parcial ou por espaço, a casco nú, por tempo ou prazo, por viajem ou bareboat charter party.
5 Art. 567 - A carta-partida deve enunciar: 1 - o nome do capitão e o do navio, o porte deste, a nação a que pertence, e o porto do seu registro (artigo nº. 460); 2 - o nome do fretador e o do afretador, e seus respectivos domicílios; se o fretamento for por conta de terceiro deverá também declarar-se o seu nome e domicílio; 3 - a designação da viagem, se é redonda ou ao mês, para uma ou mais viagens, e se estas são de ida e volta ou somente para ida ou volta, e finalmente se a embarcação se freta no todo ou em parte; 4 - o gênero e quantidade da carga que o navio deve receber, designada por toneladas, nºs, peso ou volume, e por conta de quem a mesma será conduzida para bordo, e deste para terra; 5 - o tempo da carga e descarga, portos de escala quando a haja, as estadias e sobre estadias ou demoras, e a forma por que estas se hão de vencer e contar; 6 - o preço do frete, quanto há de pagar-se de primagem ou gratificação, e de estadias e sobre estadias, e a forma, tempo e lugar do pagamento; 7 - se há lugares reservados no navio, além dos necessários para uso e acomodação do pessoal e material do serviço da embarcação; 8 - todas as mais estipulações em que as partes se acordarem.

6 Que por sua vez depende da relação de igualdade ou hipossuficiência das partes contratadas.
7 O conhecimento, para tanto, deverá conter (artigo 575 e incisos, do Código Comercial): “Art. 575 - O conhecimento deve ser datado, e declarar: 1 - o nome do capitão, e o do carregador e consignatário (podendo omitir-se o nome deste se for à ordem), e o nome e porte do navio; 2 - a qualidade e a quantidade dos objetos da carga, suas marcas e números, anotados à margem; 3 - o lugar da partida e o do destino, com declaração das escalas, havendo-as; 4 - o preço do frete e primagem, se esta for estipulada, e o lugar e forma do pagamento; 5 - a assinatura do capitão (artigo nº. 577), e a do carregador.”

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